O gigante vem aí, de olho no mercado


Clinton, o presidente camelô, força a barra para vender

o que o Brasil não quer comprar

As viagens presidenciais ao exterior, quaisquer que sejam os países envolvidos, costumam ser feitas para melhorar as relações entre as partes. Depois de cinco anos de governo, durante os quais dispensou o tratamento de fundo de quintal habitualmente reservado à América do Sul, a visita que o presidente americano Bill Clinton faz ao Brasil nesta semana tinha esse caráter genérico de aproximação e boa vontade. Não que se esperassem grandes resultados concretos. Ao contrário, Brasil e Estados Unidos estão travando uma disputa comercial, que até há pouco era acompanhada apenas pelos iniciados. Os Estados Unidos querem ampliar ainda mais o acesso de seus produtos e serviços ao mercado latino-americano em geral e ao brasileiro em particular. Propõem que isso aconteça no âmbito da Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, um grande mercado comum, sem barreiras, que abarcaria todo o continente, e já em 2005. O Brasil não quer. Amparado em uma rara unanimidade nacional em torno do assunto, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso argumenta que expor os setores produtivos brasileiros, ainda estressados com o choque da primeira abertura, à competitividade incomparável do gigante americano seria um desastre de alto custo econômico e social.

Com essa disputa na mesa, a visita de Clinton já registraria considerável nível de tensão, potencializado pelas jogadas americanas que pretendem, até agora com sucesso, manipular a Argentina do presidente Carlos Menem como um terceiro elemento do triângulo, destinado a manter o Brasil em permanente estado de nervos. De qualquer maneira, a diplomacia brasileira esperava que a empatia entre Clinton e FHC, dois homens de bem com a vida, consigo mesmos e com seus interlocutores, funcionasse. Os dois trocariam gestos amistosos e, entre sorrisos, concordariam em continuar discordando. Escorregões diplomáticos, cevados na arrogância americana, no entanto, acabaram azedando o clima da visita de maneira surpreendente. Com a sutileza de um marine em dia de invasão, o embaixador Melvyn Levitsky desatou a falar bobagens. "O grande prêmio da Alca para o Brasil é a entrada na economia americana", disse ele, como se tratasse com um bando de parvos, ignorantes dos riscos da entrada em massa e sem peias dos americanos na economia brasileira. "O governo brasileiro tem a obrigação de participar da Alca porque assinou a Declaração de Miami", emendou. É fato hoje lamentado nos mais altos escalões que o Brasil, durante o governo de Itamar Franco, aderiu ao compromisso genérico de criar a Alca a partir de 2005. Mas o governo brasileiro já disse e repete sem parar que quer empurrar a coisa bem mais para adiante e tem todo o direito de fazê-lo.

Go home Aos desaforos do embaixador, atribuídos a uma personalidade rude, pelo menos no tocante à forma, somou-se outra encrenca: a menção à "corrupção endêmica" existente no Brasil, feita de passagem num documento de 158 páginas preparado pela mesma embaixada do senhor Levitsky e destinado a empresários americanos interessados em conhecer o país. Fora de contexto, a divulgação de um relatório informativo falando vagamente em corrupção talvez fosse rapidamente assimilada. Ainda mais porque o documento da diplomacia americana atesta que o Brasil vem melhorando sua posição no ranking mundial da safadeza pública, que é publicado anualmente pela Universidade de Goettingen, na Alemanha embora não cite que os Estados Unidos vêm piorando (em 36º lugar na lista deste ano, o Brasil melhorou quatro posições em relação a 1996, e os Estados Unidos, em 16º, pioraram uma). Com o pano de fundo de uma visita do presidente americano ao Brasil, na qual se discute uma disputa comercial séria, o relatório remexeu o caldeirão de sentimentos antagônicos que se julgava sepultado e fez reaparecer um clima de yankees go home, em que até as exigências da segurança de Clinton foram magnificadas como expressão do imperialismo do Grande Irmão do Norte. Num repente de resistência foquista à invasão dos gringos, o presidente do Supremo Tribunal Federal foi para a linha de frente: avisou que não iria ao jantar oferecido por FHC a Clinton nesta segunda-feira.

Levitsky passou o resto da semana tentando consertar o estrago causado pela agressividade insensata, justamente em relação ao governo de um presidente brasileiro que vê os Estados Unidos com a maior simpatia, sentimento este amparado em contratos zilionários para a indústria americana, como o do Sivam, e numa conta comercial favorável aos Estados Unidos já batendo na casa dos 5 bilhões de dólares. Primeiro, o embaixador mandou retirar a palavra "endêmica" do documento. Pela nova versão, a corrupção no Brasil seria apenas "persistente". Na sexta-feira, como o rufar dos tambores só aumentava, o embaixador baixou a guarda e qualificou o relatório de "inoportuno". A semana acabou com a sensação forte de que mais um pouco de ousadia e Levitsky acabaria admitindo que "inoportuno", sim, é falar de corrupção agora, não no Brasil, mas nos Estados Unidos. Nada mais fácil. Clinton e sua mulher, Hillary, têm no momento catorze amigos, associados, ex-sócios ou aliados políticos recolhidos em penitenciárias, sendo processados ou em liberdade vigiada, por envolvimento numa obscura transação imobiliária e financeira no tempo em que o presidente governava o Estado de Arkansas. No campo mais pantanoso ainda das contribuições de campanha, ele e o vice, Al Gore, são suspeitos de ilegalidades. No episódio mais recente e comprometedor, o presidente é acusado de obstruir a Justiça por não ter entregue a tempo fitas de vídeo com cenas da caça ao dinheiro em plena Casa Branca.

A direção da riqueza A idéia de atribuir o clima azedo à inabilidade de um embaixador, no entanto, não teve aceitação incondicional. "Não acredito que tenha acontecido um descuido, pois a diplomacia americana é profissional e cuidadosa", diz Paulo Cunha, presidente do grupo Ultra e amigo de jantares freqüentes com o presidente Fernando Henrique. "O que se fez foi deixar o nosso presidente constrangido por motivos políticos numa hora em que é preciso ser firme, pois se trata de debater questões comerciais." Esse, evidentemente, é o verdadeiro debate um problema real, sério, de grandes implicações para a vida e o bolso dos brasileiros.

Um projeto aparentemente sonhador da diplomacia pan-americana que começou a ser arquitetado há três anos, a Alca até hoje gerou apenas conversas inflamadas, contra e a favor, de ambos os lados da linha do Equador.

Em sua concepção original, a Alca derrubaria as barreiras comerciais entre os países do continente, do Canadá à Argentina. Produtos e serviços fluiriam entre as fronteiras dos países americanos sem restrições nem impostos. Como conseqüência quase imediata, os preços internos cairiam e economias hoje subjugadas pela inoperância e pela falta de opções, como as do Paraguai, da Bolívia e da Colômbia, receberiam um impulso novo e teriam chance de escapar da estagnação. Se o projeto for para a frente, a Alca criará o que se chama de um "bloco econômico", mais ou menos como o que brevemente unirá de vez os países europeus e semelhante ao que está sendo montado pelas economias asiáticas. O bloco da Alca teria mais de 700 milhões de consumidores e abarcaria uma riqueza da ordem de 9 trilhões de dólares. Seria tão grande quanto o bloco asiático e muito maior do que a União Européia. "Há países que assinariam qualquer coisa no dia seguinte, como os da América Central ou a Colômbia, que só têm a ganhar no mercado americano", diz Roberto Teixeira da Costa, presidente do Conselho de Empresários da América Latina, Ceal.

As Américas, porém, abrigam países mais consolidados, ricos e complexos, como Brasil, Argentina e Chile, que têm enormes dúvidas sobre em que direção a riqueza vai correr quando o soro da economia americana for enfiado em suas veias. Os Estados Unidos querem iniciar a transfusão já. O Brasil acha que só pode começar a aderir a partir do ano 2005, quando o acordo regional do Mercosul que une Brasil, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia estiver consolidado. Isso se tudo der certo. Do contrário, o Brasil pode saltar fora. "Se durante as negociações para a Alca o Brasil não ficar satisfeito com os resultados, se as conversações não levarem a uma melhoria efetiva do nosso acesso aos mercados mais desenvolvidos do continente, não iremos entrar", declarou na sexta-feira passada o ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, avançando um passo mais ousado em relação à estratégia protelatória vigente até agora. Lampreia explica as bases do raciocínio. O Brasil já tem um relacionamento comercial intenso com a Europa e o Mercosul e não pretende sacrificá-lo em benefício da Alca. Com a ampliação desse relacionamento multilateral, prevista em uma nova rodada de negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio, em 1999, o mercadão continental ficaria esvaziado. "Se seguirmos em uma negociação ampla, com vários países, as conversações sobre a Alca perdem sentido", diz o chanceler.

Chupa-cabras Tudo indica que, fora uma desmunhecada inesperada de Carlos Menem diante do charme americano, a Argentina feche posição com o Brasil. Clinton encontrará em Brasília e Buenos Aires o mesmo discurso contrário à derrubada radical de tarifas. Até que se fortaleça a união comercial do Mercosul e seu 1 trilhão de dólares de PIB, a conclusão unânime no Brasil e na Argentina é de que a Alca seria hoje uma sangria nas economias de ambos os países. A maneira hábil como os Estados Unidos têm manipulado o governo Menem, no entanto, deixava espaço para um bocado de ansiedade a respeito de seu comportamento face ao encanto e às benesses despejados em ampla dose por Clinton.

Na interpretação do alto escalão do governo brasileiro, os americanos adoram ter nas mãos um Menem fragilizado politicamente por escândalos de corrupção, fortemente escorado na "aliança especial" com os Estados Unidos e, assim, suscetível a ser usado para enfraquecer a posição do Brasil.

A diplomacia brasileira apostava que prevaleceria, em Buenos Aires, o interesse argentino em não apressar o mercadão. O pavor da Alca tem duas frentes. A primeira é a de que a simples erradicação das tarifas funcione como o chupa-cabras nos setores mais frágeis. "Bancos, escritórios de advocacia, correios, transportadoras não teriam condições mínimas de enfrentar a concorrência direta com seus similares americanos", diz o advogado Durval Noronha De Goyos Junior, especialista no comércio internacional. Setores como a indústria automobilística, a siderurgia e mesmo a petroquímica não resistiram ao embate com os produtos americanos vendidos aqui sem tarifa. Para os consumidores seria uma festa, talvez de vida curta. Para quem precisa dos empregos gerados por esses setores seria um desastre, sem sequer o acolchoado oferecido ao México, depois do Nafta, pelas célebres maquiladoras como vizinho do gigante americano, a distância não pesa no preço final dos produtos vendidos nos Estados Unidos.

Guerra de preços A segunda onda de calafrios é provocada pela prática americana de criar barreiras não alfandegárias para os produtos importados, que poderia perpetuar-se, com novos disfarces, mesmo com a Alca. Calcula-se que o Brasil venha perdendo anualmente de 2,5 a 3 bilhões de dólares de divisas por conta dessas barreiras. Elas funcionam sutilmente. Sob acusação de que a carne brasileira tem aftosa, os americanos barram sua entrada. A soja brasileira contém um grau de umidade que eles consideram incompatível com seus padrões. Nossa gasolina polui mais do que o permitido pelas leis ambientais americanas. "Muitas dessas barreiras são legais, o que não as impede de ser tremendamente injustas", diz Marcus Vinicius Pratini de Moraes, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil.

A política do governo brasileiro de ir devagar com o andor da Alca encontra uma impressionante aprovação. O coro é unânime: o país precisa de tempo para ajustar a sua economia, não dá para abrir tudo agora, muito menos em tempos de déficit comercial nas alturas. E os Estados Unidos, por que estão tão ansiosos? "A pressão e a pressa americanas se devem ao fato de a indústria deles estar numa fase exuberante. Eles precisam de mercados", diz Bolívar Lamounier, cientista político, diretor do Instituto de Estudos Econômicos e Políticos de São Paulo. Existem outras razões. Os americanos, em primeiro lugar, temem que o Mercosul se torne um cliente preferencial da União Européia. "A América Latina é um mercado natural para nós, mas não podemos achar que ele já foi conquistado", dizia na semana passada Thomas McLarty, assessor especial de Clinton e interlocutor de Lampreia e de Fernando Henrique, com quem foi acertado que não haveria um comunicado conjunto ao fim dos encontros entre os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos, uma vez que existem divergências de fundo na área mais importante. Em segundo lugar, os americanos estão prevendo muitos anos pela frente de dólar forte, uma conseqüência do equilíbrio orçamentário que se propuseram fazer até o ano 2002. Isso forçosamente diminui o poder de competição dos produtos americanos nos mercados tradicionais.

Por isso, eles precisam urgentemente abrir novas fronteiras e vender para países onde a guerra de preços não chegou ainda caso típico do Brasil e da Argentina. Numa era em que a maior potência de todos os tempos não se vexa, ao contrário, de ter seu presidente na condição de camelô-mor, o Brasil vai precisar de muito fôlego para resistir e defender os próprios interesses.

O Tio Sam e a nossa batucada

Um dos riscos de Bill Clinton em sua passagem pelo Brasil é ter os ouvidos, que já não andam funcionando lá muito bem, afetados pelos tambores tonitruantes do Didá, versão feminina do Olodum convocada para tocar e dar um toque "étnico" ao jantar da segunda-feira no Palácio da Alvorada. Como se o Tio Sam estivesse querendo conhecer a nossa batucada. Não obstante a pacífica índole nacional e o fato de que são cidadãos americanos que costumam disparar contra presidentes americanos (três mortos e um ferido nos últimos 96 anos), a segurança de Clinton tratou a visita como um desembarque em zona conflagrada. Só os números já bastariam para criar essa impressão: dos 1100 integrantes da comitiva, cerca de 400 são da equipe de segurança. Além das armas convencionais, na sexta-feira ainda se discutia se seriam autorizados a entrar no país com fuzis AR-15 e bazucas. Mais do que o stallônico arsenal, foi a tentativa de impor regras próprias ao protocolo e assumir o comando do esquema de segurança que irritou o Itamaraty. Os rambos de Clinton cismaram em entrar com armas pesadas no Alvorada no dia do jantar com o presidente Fernando Henrique Cardoso, queriam instalar atiradores com fuzis de mira eletrônica no telhado e fazer eles próprios a revista dos convidados que chegassem à residência oficial do presidente brasileiro. "Eles têm o direito de fazer a segurança pessoal do presidente deles, e só", reclama um diplomata.

A obsessão americana tem suas justificativas a comitiva é grande porque o presidente, ao sair do território americano, não passa o poder ao vice; é a presidência que viaja com Clinton, que deve continuar exercendo seus poderes , mas mesmo assim parece exagerada. "Os americanos usam o mesmo manual de procedimentos para a Chechênia ou para o Brasil, e isso assusta", suaviza o porta-voz da Presidência, Sérgio Amaral. Hillary e Bill Clinton passarão apenas 37 horas no Brasil, mas trazem 50 toneladas de bagagem, que inclui água mineral, Coca-Cola, papel higiênico, chocolate, frutas, aparelhos de fax e telefonia, antenas parabólicas. Sem contar duas limusines e dois helicópteros. Por precaução, o primeiro-casal dormirá na residência do embaixador Melvyn Levitsky, um casarão no setor de mansões Park Way.

Silent arrival A chegada será discreta, sem banda de música. O Itamaraty, que tem curiosa dificuldade para acomodar os procedimentos cerimoniais no idioma nacional, a classifica de silent arrival. O plano inicial era realizar apenas o jantar privado no palácio, mas, como Brasília não resiste à oportunidade de exibir estolas de pele sob um calor de 30 graus, organizou-se de última hora uma recepção para 700 convidados. Será do tipo que a capital federal conhece como rega-bofe do quinto escalão underclass men, explicitam os itamaratecas. Já o jantar privado reúne apenas 64 brasileiros e doze americanos. Do lado nacional, um público eclético.

Além de quatro ministros e dos presidentes da Câmara e do Senado, artistas (Sônia Braga, Gilberto Gil e Rita Lee, de longínqua ascendência americana), atletas (Oscar Schmidt; o ministro Pelé, com a perna entrevada, dispensou), amigos do presidente e empresários.

O chef francês Claude Troigros virá do Rio com um cardápio que procura conciliar formação clássica francesa, influência americana e ingredientes típicos do Brasil. A entrada é musse de kani kama e legumes com vinagrete de urucum. Como prato principal, um filé de pargo empanado com cubinhos de pão, berinjelas cozidas no mel, ketchup caseiro e maionese de ervas. A segunda opção de prato principal é carne de pombo com foie gras sobre um pão do tipo focaccia. "A carne fica por cima do pão e é moldada em forma de hambúrguer", explica Troigros, evocando o quitute favorito de Clinton. De sobremesa, torta de queijo (cheesecake) com calda de goiaba. Terminada a refeição, os convidados vão assistir à apresentação do grupo Didá e da cantora baiana Virginia Rodrigues.

Às 10 horas de terça-feira, Clinton encontra-se com Fernando Henrique no Palácio do Planalto. Trocam presentes o americano vai ganhar um conjunto de gamelas brasileiríssimas, que o Itamaraty insistiu em chamar de bowls , conversam em particular com o embaixador Gelson Fonseca, tomando nota (notetaker, persistem os diplomatas), assinam atos de cooperação bilateral e, ao meio-dia, Clinton faz uma refeição leve -- tudo bem, tudo bem, snack -- por lá mesmo: sanduíche de salmão com salada e refrigerante. Dali o presidente americano parte para uma passagem relâmpago pelo Congresso, antes de seguir viagem para São Paulo e Rio de Janeiro, onde, se a segurança deixar, visitará a Vila Olímpica da Mangueira, montada com o único objetivo de fornecer cenas politicamente corretas para a televisão americana: o casal imperial afagando crianças pobres, alegres e, de preferência, negras.