Camilo Castelo Branco

Nota Biográfica

 

 

Camilo Castelo Branco (1825-1890) nasce em Lisboa no dia 16 de Março, filho ilegítimo de Manuel Joaquim Botelho e Jacinta Maria. Frequentou a sociedade portuense, dedicando-se ao jornalismo, e teve uma vida romanticamente agitada, desde vários casos amorosos e prisão. Sentindo-se cego, suicida-se com um tiro na cabeça na casa de São Miguel de Seide. Notabilizou-se com várias novelas, uma delas Amor de Perdição. É um dos maiores escritores portugueses do século XIX. Algumas obras: Os Pundonores Desagravados (poema satírico, 1845), O Juízo Final e O Sonho do Inferno (poema satírico, 1845), Agostinho de Ceuta (teatro, 1847), A Murraça (sátira, 1848), Maria, não me mates, que sou tua mãe (novela, 1848), O Marquês de Torres Novas (teatro, 1849), O Caleche (sátira, 1849), O Clero e o sr. Alexandre Herculano (polémica, 1850), Inspirações (poesia lírica, 1851), Anátema (novela, 1851), Mistérios de Lisboa (novela, 1854), Livro Negro de Padre Dinis (novela, 1855), Cenas Contemporâneas (1855), A Filha do Arcediago (novela, 1855), A Neta do Arcediago (novela, 1856), Onde está a felicidade? (novela, 1856), Um Homem de Brios (novela, 1857), Carlota Ângela (novela, 1858), O Que fazem Mulheres (novela, 1858), Cenas da Foz (novela, 1861), O Romance de um Homem Rico (novela, 1861), Amor de Perdição (novela, 1862), Coração, Cabeça e Estômago (novela, 1862), Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado (novela, 1863), O Bem e o Mal (novela, 1863), Amor de Salvação (novela, 1864), A Sereia (novela, 1865), A Queda dum Anjo (novela, 1866), O Judeu (novela, 1866), O Olho de Vidro (novela, 1866), A Bruxa de Monte Córdova (novela, 1867), A Doida do Candal (novela, 1867), O Retrato de Ricardina (novela, 1868), Os Brilhantes do Brasileiro (novela, 1869), A Mulher Fatal (novela, 1870), O Regicida (novela, 1874), A Filha do Regicida (novela, 1875), A Caveira do Mártir (novela, 1875), Eusébio Macário (novela, 1879), A Corja (novela, 1880), A Brasileira de Prazins (novela, 1883), etc.

AMOR DE PERDIÇÃO (1862)

INTRODUÇÃO

Folheando os livros de antigos assentamentos no cartório das cadeias da Relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a fl. 232, o seguinte:

Simão António Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei - Filipe Moreira Dias.

À margem esquerda deste assento está escrito:

Foi para a Índia em 17 de Março de 1807.

Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há-de fazer dó.

Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As louçanias do coração que ainda não sonha em frutos e todo se embalsama no perfume das flores! Dezoito anos! O amor daquela idade! A passagem do seio da família, dos braços da mãe, dos beijos das irmãs, para as caricias mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor da mesma sazão e dos mesmos aromas, e à mesma hora da vida! Dezoito anos !... E degredado da pátria, do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!... É triste!

O leitor decerto se compungia; e a leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha a história daqueles dezoito anos, choraria!

Amou, perdeu-se e morreu amando.

É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem formada das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do Céu um reflexo da divina misericórdia?! Essa, a minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdera a honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?!

Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobressalto que me causaram aquelas linhas, de propósito procuradas, e lidas com amargura e respeito e, ao mesmo tempo, ódio. Ódio, sim... A tempo verão se é perdoável o ódio, ou se antes me não fora melhor abrir mão desde já de uma história que me pode acarear enojos dos frios julgadores do coração e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude de homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra.

Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem e um dos mais antigos solarengos de Vila Real de Trás-os-Montes, era, em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma dama do Paço, D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha dum capitão de cavalos, neta de outro, António de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tão notável por sua jerarquia como por um, naquele tempo, precioso livro acerca da arte da guerra.

Dez anos de enamorado, mal sucedido, consumira em Lisboa o bacharel provinciano. Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I minguavam-lhe dotes físicos: Domingos Botelho era extremamente feio. Para se inculcar como partido conveniente a uma filha segunda faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres dele não excediam a trinta mil cruzados em propriedades no Douro. Os dotes de espírito não o recomendavam também: era alcançadíssimo de inteligência e granjeara entre os seus condiscípulos da Universidade o epíteto de Brocas, com que ainda hoje os seus descendentes em Vila Real são conhecidos. Bem ou mal derivado, o epíteto Brocas vem de broa. Entenderam os académicos que a rudeza do seu condiscípulo procedia de muito pão de milho que ele digerira na sua terra.

Domingos Botelho devia ter uma vocação qualquer, e tinha: era excelente flautista; foi a primeira flauta do seu tempo; e a tocar a flauta se sustentou dois anos em Coimbra, durante os quais seu pai !he suspendeu as mesadas. porque os rendimentos da casa não bastavam a livrar outro filho de um crime de morte (1).

Formara-se Domingos Botelho em 1767 e fora a Lisboa ler no Desembargo do Paço, iniciação banal dos que aspiravam à carreira da magistratura. Já Fernão Botelho, pai do bacharel, fora bem aceite em Lisboa, e mormente ao duque de Aveiro, cuja estima lhe teve a cabeça em risco na tentativa regicida de 1758. O provinciano saiu das masmorras da Junqueira ilibado da infamante nódoa, e até benquisto do conde de Oeiras, porque tomara parte na prova que este fizera do prior de sua genealogia sobre a dos Pintos Coelhos, do Bonjardim do Porto: pleito ridículo, mas estrondoso, movido pela recusa que o fidalgo portuense fizera de sua filha ao filho de Sebastião José de Carvalho.

As artes com que o bacharel flautista vingou insinuar-se na estima de D. Maria I e Pedro III não as sei eu. É tradição que o homem fazia rir a rainha com as suas facécias e porventura com os trejeitos de que tirava o melhor do seu espírito. O certo é que Domingos Botelho frequentava o paço e recebia do bolsinho da soberana uma farta pensão, com a qual o aspirante a juiz de fora se esqueceu de si, do futuro e do ministro da justiça, que, muito rogado, fiara das suas letras o encargo de juiz de fora de Cascais.

Já está dito que ele se atreveu aos amores do paço, não poetando como Luís de Camões ou Bernardim Ribeiro, mas namorando na sua prosa provinciana e captando a bem-querença da rainha para amolecer as durezas da dama. Devia de ser, afinal, feliz o «Doutor Bexiga» - que assim era na corte conhecido - para se não desconcertar a discórdia em que andam rixados o talento e a felicidade. Domingos Botelho casou com D. Rita Preciosa. Rita era uma formosura, que ainda aos cinquenta anos se podia prezar de o ser. E não tinha outro dote, se não é dote uma série de avoengos, uns bispos, outros generais, e entre estes o que morrera frigido em caldeirão de não sei que terra da mourisma, glória, na verdade, um pouco ardente, mas de tal monta que os descendentes do general frito se assinaram Caldeirões.

A dama do paço não foi ditosa com o marido. Molestavam-na saudades da corte, das pompas das câmaras reais e dos amores de sua feição e molde, que imolou ao capricho da rainha. Este desgostoso viver, porém, não empeceu que se reproduzissem em dois filhos e três meninas. O mais velho era Manuel, o segundo Simão; das meninas, uma era Maria, a segunda Ana e a última tinha o nome de sua mãe e alguns traços de beleza dela.

O juiz de fora de Cascais, solicitando lugar de mais graduado banco, demorava em Lisboa, na freguesia da Ajuda, em 1784. Neste ano é que nasceu Simão, o penúltimo dos seus filhos. Conseguiu ele, sempre balanceado da fortuna, transferência para Vila Real, sua ambição suprema.

A distância duma légua de Vila Real estava a nobreza da vila esperando o seu conterrâneo. Cada família tinha a sua liteira com o brasão da casa. A dos Correias de Mesquita era a mais antiquada no feito e as librés dos criados as mais surradas e traçadas que figuravam na comitiva.

D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua grande luneta de ouro e disse:

- Ó Meneses, aquilo que é?

- São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.

- Em que século estamos nós nesta montanha? - tornou a dama do paço.

- Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.

- Ah!, sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze...

O marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeara grandemente.

Fernão Botelho, pai do juiz de fora, saiu à frente do préstito para dar a mão à nora, que apeava da liteira, e conduzi-la à de casa. D. Rita, antes de ver a cara do seu sogro, contemplou-lhe a olho armado as fivelas de aço e a bolsa do rabicho. Dizia ela depois que os fidalgos de Vila Real eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa. Antes de entrar na avoenga liteira de seu marido, perguntou, com a mais refalsada seriedade, se não haveria risco em ir dentro daquela antiguidade. Fernão Botelho asseverou a sua nora que a sua liteira não tinha ainda cem anos e que os machos não excediam a trinta.

O modo altivo como ela recebeu as cortesias da nobreza - velha nobreza, que para ali viera em tempo de D. Dinis, fundador da vila - fez que o mais novo do préstito, que ainda vivia há doze anos, me dissesse a mim: «Sabíamos que ela era dama da Senhora D. Maria I; porém, da soberba com que nos tratou ficámos pensando que seria ela própria rainha». Repicaram os sinos da terra quando a comitiva assomou à Senhora de Almudena. D. Rita disse ao marido que a recepção dos sinos era a mais estrondosa e barata.

Apearam à porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do paço relanceou os olhos pela fachada do edifício e disse de si para si: «É uma bonita vivenda para quem foi criada em Mafra e Sintra, na Bemposta e Queluz...»

Decorridos alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha medo de ser devorada das ratazanas; que aquela casa era um covil de feras; que os tectos estavam a desabar; que as paredes não resistiriam ao Inverno; que os preceitos de uniformidade conjugal não obrigavam a morrer de frio uma esposa delicada e afeita às almofadas do palácio dos reis. Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte e começou a fábrica dum palacete. Escassamente lhe chegavam os recursos para os alicerces: escreveu à rainha e obteve generoso subsídio com que ultimou a casa.

As varandas das janelas foram a última dádiva que a real viúva fez à sua dama. Quer-nos parecer que a dádiva é um testemunho, até agora inédito, da demência da Senhora D. Maria I.

Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas; D. Rita, porém, teimara que no escudo se esquarteassem também as suas; mas era tarde, porque já a obra tinha vindo do escultor, e o magistrado não podia com a segunda despesa, nem queria desgostar seu pai, orgulhoso de seu brasão. Resultou daqui ficar a casa sem armas e D. Rita vitoriosa (2).

O juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga dobrou-se até aos grandes da província, ou antes houve por bem levantá-los até ela. D. Rita tinha uma corte de primos, uns que se contentavam de serem primos, outros que invejavam a sorte do marido. O mais audacioso não ousava fitá-la de rosto, quando o ela remirava com a luneta, em jeito de tanta altivez e zombaria, que não será estranha figura dizer que a luneta de Rita Preciosa era a mais vigilante sentinela da sua virtude.

Domingos Botelho desconfiava da eficácia dos merecimentos próprios para cabalmente encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o ciúme; mas sufocava os suspiros, receando que Rita se desse por injuriada da suspeita. E razão era que se ofendesse. A neta do general frigido no caldeirão sarraceno ria dos primos, que, por amor dela, erriçavam e empoavam as cabeleiras com desgracioso esmero e cavaleavam estrepitosamente na calçada os seus ginetes, fingindo que os picadores da província não desconheciam as graças hípicas do marquês de Marialva.

Não o cuidava assim, porém, o juiz de fora. O intriguista que lhe trazia o espírito em ânsias era o seu espelho. Via-se sinceramente feio e conhecia Rita cada vez mais em Dor e mais enfadada no trato íntimo. Nenhum exemplo da história antiga, exemplo de amor sem quebra entre o esposo deforme e a esposa linda, lhe ocorria. Um só lhe mortificava a memória, e esse, conquanto fosse da fábula, era-lhe avesso, e vinha a ser o casamento de Vénus e Vulcano. Lembravam-lhe as redes que o ferreiro coxo fabricava para apanhar os deuses adúlteros e assombrava-se da paciência daquele marido. Entre si, dizia ele que, erguido o véu da perfídia, nem se queixaria a Júpiter, nem armaria ratoeiras aos primos. A par do bacamarte de Luís Botelho, que varara em terra o alferes, estava uma fiteira de bacamartes em que o juiz de fora era entendido com muito superior inteligência à que revelava na compreensão do Digesto e das Ordenações do Reino.

Este viver de sobressaltos durou seis anos, ou mais seria. O juiz de fora empenhara os seus amigos ná transferência e conseguiu mais do que ambicionava: foi nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou saudades em Vila Real e duradoura memória da sua soberba, formosura e graças de espírito. O marido também deixou anedotas que ainda agora se repetem. Duas contarei somente, para não enfadar. Acontecera um lavrador mandar-lhe o presente duma vitela e mandar com ela a vaca, para não se desgarrar a filha. Domingos Botelho mandou recolher à loja a vitela e a vaca, dizendo que quem dava a filha dava a mãe. Outra vez, deu-se o caso de lhe mandarem um presente de pastéis em rica salva de prata. O juiz de fora repartiu os pastéis pelos meninos e mandou guardar a salva, dizendo que receberia como escárnio um presente de doces, que valiam dez patacões, sendo que naturalmente os pastéis tinham vindo como ornato da bandeja.

E assim é que, ainda hoje, em Vila Real, quando se dá um caso análogo de ficar alguém com o conteúdo e continente, diz a gente da terra: «Aquele é como o Dr. Brocas.»

Não tenho assunto de tradição com que possa reter-me em miudezas da vida do provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita aborrecia a comarca e ameaçava o marido de ir com seus cinco filhos para Lisboa, se ele não saísse daquela intratável terra. Parece que a fidalguia de Lamego, em todo o tempo orgulhosa de uma antiguidade que principia na aclamação de Almacave, desdenhou a filáucia da dama do paço e esmerilou certas vergônteas podres do tronco dos Botelhos Correias de Mesquita, desprimorando-lhe as sãs com o facto de ele ter vivido dois anos em Coimbra tocando flauta.

Em 1801 achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita corregedor em Viseu.

Manuel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos e frequenta o 2º ano jurídico. Simão, que tem quinze, estuda Humanidades em Coimbra. As três meninas são o prazer e a vida toda do coração de sua mãe.

O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder viver com seu irmão, temeroso do génio sanguinário dele. Conta que a cada passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive com os mais famosos perturbadores da academia e corre de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com assuadas. O corregedor admira a bravura de seu filho Simão e diz à consternada mãe que o rapaz é a figura e o génio de seu bisavô Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que dera Trás-os-Montes.

Manuel, cada vez mais aterrado das arremetidas de Simão, sai de Coimbra antes de férias e vai a Viseu queixar-se e pedir que lhe dê seu pai outro destino. D. Rita quer que seu filho seja cadete de cavalaria. De Viseu parte para Bragança Manuel Botelho, e justifica-se nobre dos quatro costados para ser cadete.

No entanto, Simão recolhe a Viseu com os seus exames feitos e aprovados. O pai maravilha-se do talento do filho e desculpa-o da extravagância por amor do talento. Pede-lhe explicações do seu mau viver com Manuel, e ele responde que seu irmão o quer forçar a viver monasticamente.

Os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de compleição; beto homem, com as feições de sua mãe e a corpulência dela; mas de todo avesso em génio. Na plebe de Viseu é que ele escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que faz, Simão zomba das genealogias, e mormente do general Caldeirão, que morreu frito. Isto bastou para ele granjear a malquerença de sua mãe. O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher e tomou parte no desgosto dela e na aversão ao filho. As irmãs temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem ele brincava puerilmente e a quem obedecia, se lhe ela pedia, com meiguices de criança, que não andasse com pessoas mecânicas.

Finalizavam as férias, quando o corregedor teve um grande dissabor. Um dos seus criados tinha ido levar a beber os machos e, por descuido ou propósito, deixou quebrar algumas vasilhas que estavam à vez no parapeito do chafariz. Os donos das vasilhas conjuraram contra o criado; espancaram-no. Simão passava nesse ensejo; e, armado de um fueiro que descravou de um carro, partiu muitas cabeças e rematou o trágico espectáculo pela farsa de quebrar todos os cântaros. O povoléu intacto fugira espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do corregedor; os feridos, porém, incorporaram-se e foram clamar justiça à porta do magistrado.

Domingos Botelho bramia contra o filho e ordenava ao meirinho-geral que o prendesse, à sua ordem. D. Rita, não menos irritada, mas irritada como mãe, mandou, por portas travessas, dinheiro ao filho para que, sem detença, fugisse para Coimbra e esperasse lá o perdão do pai.

O corregedor, quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se zangado e prometeu fazê-lo capturar em Coimbra. Como, porém, D. Rita lhe chamasse brutal nas suas vinganças e estúpido juiz de uma rapaziada, o magistrado desenrugou a serenidade postiça da testa e confessou tacitamente que era brutal o estúpido juiz.

(1) Há vinte anos que eu ouvi de um coevo do facto a história do assassínio, assim contada: era em Quinta-Feira Santa. Marcos Botelho, irmão de Domingos, estava na festa de Endoenças, em S. Francisco, defrontando com uma dama, namorada sua, e desleal dama que ela era. Noutro ponto da igreja estava, apontado em olhos e coração à mesma mulher, um alferes de infantaria. Marcos enfreou o seu ciúme até ao final do oficio da Paixão. À saída do templo encarou no militar e provocou-o. O alferes tirou da espada e o fidalgo do espadim. Terçaram as armas longo tempo sem desaire, nem sangue. Amigos de ambos tinham conseguido aplacá-los, quando Luís Botelho, outro irmão de Marcos, desfechou uma clavina no peito do alferes, e ali, à entrada da Rua do logo da Bola, o derribou morto. O homicida foi livre por graça régia (Nota da 1ª edição).

(2) É a casa-palacete da Rua da Piedade, hoje pertencente ao Dr. António Gerardo Monteiro (Nota da 1ª edição).

 Casa de Camilo em São Miguel de Seide